CONTRADIÇÕES E LIÇÕES DA PESCA “ESPORTIVA”

PAULO FALCÃO

Nas últimas duas décadas, a concepção do pesque e solte (catch and release) – denominada no contexto nacional como a pesca “esportiva” – tem sido, no que tange à preservação da natureza, a base e a esperança da pesca amadora. Os diversos mecanismos de comunicação vinculados à pesca – sites, blogs, redes sociais, programas de TV e revistas – compartilham dessa concepção e proferem compulsivamente a importância do pescar e soltar. “Pescar e preservar” ou “soltar hoje para pescar amanhã/sempre” são frases comuns nessas mídias.¹

A priori, pode-se destacar claramente o discurso hegemônico que tem norteado, a partir dos seus pressupostos ideológicos e diversos interesses, as práticas e as atitudes dos pescadores/as brasileiros/as. Dessa forma, o objetivo deste texto é pensar o discurso do pesque e solte; analisar suas possíveis contradições e, posteriormente, emancipar a visão dos pescadores acerca da modalidade.

Apropriar-se de determinada concepção, seja ela qual for, é assumir com determinado grau de consciência uma posição e, consequentemente, adotar os métodos e as condutas atreladas aos seus respectivos pressupostos. Nesta reflexão, trata-se da pesca “esportiva” – o pesque e solte – caracterizado, resumidamente, como o ato de pescar o peixe e soltá-lo, para que ele possa continuar o seu ciclo de vida: crescer, reproduzir e quiçá, no futuro, ser capturado por outro/a pescador/a. No entanto, algumas práticas não correspondem ao discurso e devem ser urgentemente superadas, tais como:²

– um pescador capturar dois peixes ao mesmo tempo (dublê);
– capturar o mesmo exemplar diversas vezes no mesmo dia;
– o famoso e carinhoso abraço no peixe;
– deixar cair e/ou deixá-lo no chão para tirar o anzol;
– exagerar na quantidade de anzóis e garateias – jig head e jumping jigs semelhantes aos “chuveirinhos” (com o anzol, suportes hooks e garateias);
– transportar o tucunaré do ponto de sua captura até o local de pesagem nos torneios;
– técnicas para não deixar o peixe saltar;

Seria possível citar mais exemplos, porém, os supracitados demonstram de forma clara as incoerências e as contradições da pesca “esportiva”. Não deixar e/ou evitar o salto do peixe é perder a rara oportunidade de admirar um dos momentos mágicos da pesca, pois, no contexto do pesque e solte, torna-se indiferente à captura ou não, afinal, o peixe não voltará para água? É visível ainda a postura de pescador-explorador-caçador dos praticantes da pesca, ao ponto de ignorarem os principais componentes artísticos da prática.³

A perspectiva do pesque e solte constitui-se no âmbito qualitativo e difere da dimensão quantitativa que imperou durante muitos anos. Outrora, os pescadores exibiam com orgulho suas fotos com vários peixes mortos pendurados num varal, sinal de boa pescaria. Atualmente, faz-se necessário priorizar as técnicas e os métodos adequados que regem a pescaria. Portanto, pescar o mesmo peixe várias vezes no mesmo dia (cena apresentada num DVD de pesca); capturar um e deixá-lo na água para pescar outro (prática comum na pescaria de tucunarés); e transportar o tucunaré do seu habitat para pesá-lo nos torneios, enfim, todas são ações contraditórias ao próprio discurso proferido pelos pescadores “esportivos”.

Para além da disputa ferrenha entre o/a pescador/a e o peixe, assumir a concepção do pesque e solte é modificar os procedimentos técnicos, os métodos, os olhares e as atitudes frente à modalidade. É preciso pensar e entender que durante a pescaria o peixe poderá escapar e quando capturado deve-se soltá-lo o mais rápido possível. É importante cuidar da integridade física do peixe, adotar técnicas e utilizar equipamentos adequados, sem exageros.

Por enquanto não será assumido aqui ser a pesca um esporte, principalmente, quando tal prática é desenvolvida por meio de iscas naturais, especificamente, pequenos seres vivos, pois o esporte é uma manifestação histórica e cultural da humanidade com a pretensão de celebrar a vida, o potencial humano e a interação do homem com a natureza. Logo, entre as diversas modalidades esportivas realizadas na natureza, é inadmissível considerar como prática esportiva uma atividade em que um ser vivo seja morto. É possível o esporte admitir a morte para celebrar determinada captura/conquista, ou melhor, celebrar o prazer do/a pescador/a?

Por fim, vale destacar a importância do pesque e solte e, como já escrito anteriormente no blog, “[…] mais do que nunca necessitamos de uma mudança radical de consciência frente à relação do homem com a natureza – precisamos sair da postura do pescador-explorador-caçador para a posição do pescador-preservador-educador”. Já é possível reconhecer mudanças significativas nos últimos anos, todavia ainda é apropriado ressaltar a necessidade de ampliação do modo de ver o pesque e solte e, principalmente, de modificação, de fato, das práticas, caso contrário, haverá eternamente o discurso do politicamente correto que jamais se materializa.
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¹ Eu não considero a pesca um esporte e penso que é desnecessária a apropriação desse termo para fundamentar, classificar e/ou legitimar a modalidade.
² Tais práticas mencionadas foram observadas em programas e DVDs de pesca. Ações incompatíveis com o discurso de preservação dos peixes. Retirar o tucunaré do habitat natural, para pesagem nos torneios, é um tanto quanto arriscado, pois o tucunaré protege os seus filhotes, logo, tal ação colocará em risco a sobrevivência de milhares de pequenos tucunarés.
³ Uma cena que ilustra o que pretendo dizer aconteceu durante o programa “Na pegada do Fly”, de Kid Ocelos, onde o apresentador fisgou um grande dourado que escapou com um salto espetacular. Mesmo assim, o pescador demonstrou extrema alegria, ou seja, reconheceu a habilidade do peixe e, principalmente, contentou-se com a beleza da cena. Ao contrário de muitos pescadores/apresentadores que se irritam quando o peixe escapa, ao ponto de jogarem seus equipamentos no barco, postura semelhante aos tenistas que jogam suas raquetes no chão quando perdem uma jogada.
* O Ibama publicou uma apostila com diversas informações sobre os procedimentos corretos para a realização do pesque e solte. Link http://www.ibama.gov.br/sophia/cnia/livros/pesqueesolte.pdf

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