QUEM FISGA QUEM?

PAULO FALCÃO

Este texto estabelece uma comparação entre a pesca e o futebol, na verdade, mais do que comparar, faço de modo despretensioso a aproximação dessas práticas. A pesca, assim como o futebol, consegue despertar na gente emoções incomparáveis. Eu, que já fiz alguns gols e capturei muitos peixes, sei bem como é.

Fisgar um peixe! Quem já teve essa oportunidade sabe que a incrível sensação e emoção de poder capturá-lo, independente do tamanho e da espécie: pescar um peixe é sempre uma alegria. Emoção semelhante ao gol no futebol; como é gostoso poder estufar a rede, como é gostoso fazer um gol.

As sensações oriundas de tais modalidades fazem com que o pescador/jogador necessite cada vez mais de fisgadas e gols, arremessos e chutes. Espécie de dependência que é tão forte ao ponto de deixarmos de lado outras atividades. É tão prazeroso, que gostamos de pescar e jogar a todo o momento e mesmo sem poder, a falta é compensada pela prática de assistir alguém pescando e/ou jogando. Caso não seja possível pescar/jogar, por conta do trabalho, falta de tempo, lugar, dinheiro, etc., nós podemos ligar a TV, ou conectar a internet e assistir a programas de pesca e a partidas de futebol.

Ser telespectador, frequentemente, é a única oportunidade para muitos pescadores/jogadores suprirem os seus principais desejos/sonhos, pois, por meio das programações é possível “pescar” em lugares incríveis, “jogar” em gramados perfeitos e ”fazer” gols de placa. Assistir o Messi, o Neymar, o Nelson Nakamura, o Jim Murata! A cada arremesso e a cada drible nos identificamos e sentimos a mesma emoção, como se fossemos nós mesmos a praticar: uau! Incrível! Habilidade, a incrível capacidade do ser humano de criar ações corpóreas sobre os objetos, técnicas e procedimentos, que configuram ações motoras complexas e resultam em movimentos esteticamente perfeitos. Arte! Pura arte de jogar e pescar.

Vamos ao ponto – a pesca e o futebol – que são para o senso comum práticas de lazer desfrutadas no tempo livre, estão exclusivamente vinculadas às questões sociais, em especial, a economia. Os mercados da bola e da pesca giram bilhões e mais bilhões. Existem produtos interligados a essas atividades que são consumidos compulsoriamente pelos seus adeptos. Não basta ter uma vara de bambu, não basta também ter um Ki-chute, é preciso parecer com o Nelsinho, com o Neymar, com a Marta, com o Murata, é preciso usar os produtos deles, assumir o estilo deles. Somos fisgados e driblados com facilidade, somos capturados e goleados e ainda curtimos. Não percebemos, mas parecemos crianças, na verdade, não crescemos, continuamos no mundo das fantasias e símbolos. Pois, não basta pescar e jogar futebol, não basta assistir, mais do que isso, nós temos que parecer com quem admiramos.

O processo mimético na infância ocorre de modo simples, a criança imagina que é determinado personagem e pronto, a brincadeira está armada, se não há o objeto, ela transforma outro naquele que deseja, por exemplo: na falta de uma espada pode-se usar uma vassoura, um pedaço de pau, um jornal ou algo parecido. Já o adulto em sua trajetória de vida perde a capacidade de fantasiar e, consequentemente, necessita de algo exterior para recuperar por alguns instantes os momentos mágicos da infância. No entanto, o preço para tal propósito é caríssimo. Mesmo diante da persistência das mídias ao pregarem constantemente que a pesca e o futebol são práticas populares, nós sabemos que já foram, mas não são mais.

É importante refletir sobre a crença de que a pesca e o futebol são para todos, pois uma coisa é pescar com vara de bambu e minhoca num lago, outra é estar a bordo de um Quest com equipamentos de última geração. Assim como, jogar bola na rua e descalço, parando constantemente para os carros passarem, não se compara com a possibilidade de alugar uma quadra com piso específico e calçar um tênis adequado. Logo, o que resta é assistir/consumir, ser um telespectador.

Apesar de todos/as “poderem” pescar e jogar, é fato que há no interior dessas práticas diferenças que configuram a relação de poder da sociedade hodierna, na qual, uma minoria é capaz de fazer/obter muitas coisas, enquanto, existe uma maioria que luta para sobreviver. Por exemplo, alguns pescam por lazer e/ou competição, por outro lado, outros estão na margem do rio com suas humildes tralhas em busca de “mistura” para o almoço. O fato de não pegar o peixe representa para alguns um dia de azar; em contrapartida, a falta do peixe para muitos pescadores é o desespero de não ter uma mesa farta. Concordo com a idéia de que todos podem pescar e jogar futebol, mas problematizo e aponto que há um abismo no interior de cada modalidade.

A manifestação emocional advinda dessas atividades movimenta os mercados – da bola e o da pesca. Nelson Rodrigues afirmou uma vez: “Em futebol, o pior cego é aquele que só vê a bola” – transpondo para a pesca: “Em pesca, o pior cego é aquele que só vê o anzol”. De modo semelhante ao futebol, o universo da pesca ultrapassa os limites da pescaria e invade a economia, a política e a ecologia. Dessa forma, faço o seguinte questionamento: quem fisga quem? Quem neste contexto é o grande pescador/jogador? Quem realmente é fisgado/goleado? O peixe ou o pescador/jogador? Certamente, os dois, porém, o peixe/jogador tem mais habilidade para escapar/driblar.

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¹ – Além dos diversos programas de pesca, atualmente, existe um canal de pesca – FISHTV.
² – Quest é um barco de alto desempenho que foi criado para as competições de pesca.

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