PENSAMENTOS FLUIDOS DE UMA PESCARIA

PAULO FALCÃO

A isca cai rente à margem, levanta água, o barulho é sutil, controlado, mas o suficiente para atrair o predador. Na fluidez da maré, o peixe observa aquele corpo estranho, não se arrisca, desconfia, aguarda o momento certo. Persisto a cada arremesso, acredito, modifico o trabalho da isca. A provocação necessária é realizada laboriosamente, a paciência faz-se necessária.

Peixe manhoso, tão manhoso quanto a tilápia selvagem, desconfiado, o mais cético do manguezal. O que me fascina é esse comportamento ardiloso, imprevisível. Seguíamos a vazante pescando: arremessando, recolhendo, observando. A repetição é aqui uma distração. Ações que seriam exaustivas em qualquer outro contexto.

Dialogava com o meu companheiro de pescaria, o guia Ederson, excelente pescador e ótimo prosador. Contei histórias, ouvi piadas, demos risadas. Reclamamos dos governos: “canalhas”. Temíamos o impacto do novo vírus. Conversamos sobre as iscas, recordamos pescarias memoráveis em Iguape. O passado revelou preciosidades, alimentou a alma. O silêncio também se fez presente. O que pensaria o meu amigo? Não sei. Acho que refletia sobre tudo o que dissemos. Pensava na próxima piada? Bem provável. Percebi, na verdade, que mais observava a movimentação da maré.

Uma tempestade mental ocorria no meu silêncio. Contradições e tensões que amargavam o deleite da repetição.  Repensava, mudava o foco, trocava de isca, puxava um assunto qualquer: “com qual isca mesmo que pegamos bem daquela vez?”. Pinchava novamente. Seria mais um dia difícil de pesca? Era uma possibilidade que me atormentava. Guardei essas agonias comigo, não seria justo manifestá-las, talvez fosse até mesmo egoísmo compartilha-las. O tempo passava. Nada acontecia. A minha tensão aumentava.

A natureza tem o seu ritmo. A maré vaza. A maré enche. A maré para. O caranguejo coberto de lama escura locomovia-se com cautela, camuflado nas raízes do mangue, despercebido, mantendo-se vivo. É uma vida dura a dele. As tainhas, escandalosas, saltavam. Saltos estabanados, irresponsáveis, quase caiam no barco.  A nossa vontade é frágil diante da fluidez da maré. Aguardávamos arremessando, conversando, recolhendo, proseando.

O trânsito dos barcos denunciava a fragilidade e a persistência dos pescadores. Alguns barcos iam para a barra do Icapara, outros seguiam sentido à cidade, nós aguardávamos na Coroa do Sapo, mas todos esperançavam melhor sorte. A espera não me fazia bem. A navegação sempre me traz novas expectativas, às vezes enganosas. Confiei na experiência do meu amigo. Não distante da gente, um rapaz pilotava um jet-ski branco e amarelo, realizando giros e mais giros, voltas e mais voltas, repetia as manobras, interrompendo o silêncio. Julguei aquilo uma chatice. Mas para ele seria chatíssimo também arremessar, recolher, arremessar… Cada um com suas chatices.

Observei os pescadores que utilizavam jighead e exploravam com suas iscas de borracha o fundo do rio, palmo a palmo. Escutei também os guizos das coloridas boias de três pescadores grisalhos que depositavam suas esperanças nos camarões vivos. Invejei a paciência deles. Dizem que a paciência é fundamental numa pescaria. Não acredito. Balela. O pescador, que se apresenta paciente, na verdade é um ser impaciente. Acho que todos ali estavam inquietos, ansiosos e apenas disfarçavam. Seguíamos todos com os ritmos dos toques de pontas de vara, seguidos de toques e mais toques. Arremessos e mais arremessos. Nada ocorria, ninguém fisgava. O silêncio revelava o descanso da maré.

A vida no mangue aflora à medida que a maré se movimenta, o que na ocasião aumentava a nossa expectativa e trazia a sensação de que a qualquer momento íamos fisgar um peixe. Dedico-me, concentro-me, mas nada ocorre. Sensação passageira e mentirosa. Vejo um barco de alumínio branco, faixas laterais verdes, vindo em nossa direção. E nele um pescador solitário, arremessando e recolhendo sua isca. Os barcos se aproximam, trocamos algumas palavras óbvias e desanimadas; os peixes não estavam ativos. Será que havia uma tempestade na mente dele também? Parecia tranquilo, seguia seu ritmo contra a maré.

Ficamos em silêncio durante uns cinco minutos, ou até mais. As vozes dentro da minha cabeça me atormentavam, segurei-me ao máximo num autocontrole sufocante. Não aguentei e comecei a reclamar. Cada frase pronunciada era acompanhada de um arrependimento amargo. O que estava fazendo? Era apenas um dia ruim, faz parte. Lembro-me com clareza que disse: “na próxima pescaria vou escolher outra condição de maré”, mal terminei a frase quando o almejado prateado resolveu aparecer, atacando com força a minha isca. Um belo cala a boca. Engoli a seco cada palavra mal-dita. Demos risadas, comemoramos e refleti: como a maré, os pensamentos são fluidos.

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Guia: Ederson Luiz Pereira de Andrade – instagram: @ederempesca

 

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